sábado, 28 de abril de 2012

Parábola das Aptidões



Era uma vez...
...um intelectual comprometido com as classes populares. Quando sua filha mais velha fez quatro anos, foi festejar essa alegria na casa de um trabalhador, cuja filha aniversariava no mesmo dia. Os pais, sentados em caixas de querosene – únicas cadeiras ou poltronas que havia nessa casa de chão batido –, tomavam chimarrão e conversavam animadamente, enquanto suas filhas brincavam. Essa é a liturgia possível para festejar aniversário nas negadas condições de qualidade de vida da maioria da população.
Enquanto assim conversavam, a filha do intelectual veio pedir lápis e papel para brincar com a amiga. O pai abriu a pasta e entregou o material solicitado. Aguçado em sua curiosidade, enquanto conversava com os amigos, acompanhava de longe as brincadeiras das crianças.
Ficou surpreso ao observar os olhos escancarados e brilhantes da amiguinha de sua filha, enquanto esta enchia as folhas de papel com riscos e círculos, desenhando coisas fabulosas. A menina não resistiu. Pediu o lápis e o papel porque nunca brincara com aquilo.
De lápis em punho, avidamente, tentou fazer um risco e... rasgou a folha de papel com a ponta do lápis. A continuação da brincadeira foi penosa e difícil.
O intelectual pensou consigo mesmo: “Pronto, esta não tem aptidão para a alfabetização. Não tem controle motor etc.”. As crianças desistiram desse brinquedo e foram brincar com bonecas.
Bonecas, em casa de pobre, como é sabido, são meias rasgadas e velhas, que são costuradas, enchidas com serragem e fechadas na ponta.
Amarra-se, então, uma corda a certa altura para separar a cabeça do resto do corpo e está pronta a boneca. Quando brincavam, eufóricas, eis que se abriu a barriga de uma das bonecas e as “tripas” se esparramaram pelo chão de terra batida. A amiguinha da filha do intelectual começou a juntar as “tripas” e repô-las na barriga da boneca. Foi até uma prateleira de tijolo, pegou agulha e linha, enfiou a linha na agulha e, com a maior naturalidade, começou a costurar a barriga da boneca. A filha do intelectual ficou surpresa e abriu ainda mais seus olhos porque nunca brincara de “doutor de bonecas”. Interrompida a cirurgia, tudo voltou ao problema inicial, para que ela brincasse de “doutor de boneca”. A filha do intelectual pôs as “tripas” de volta na barriga da boneca, foi buscar a linha e a agulha e... e..., quem diz que ela conseguiu enfiar a linha no buraco da agulha?
Entretanto, para os padrões exigidos pela escola para alfabetizar, a filha do intelectual tinha aptidão. A filha de seu amigo, que tinha um controle motor muito mais avançado e sofisticado, era considerada inapta por falta de controle motor.
Hoje, a filha do amigo do intelectual é uma eficiente e dedicada empregada doméstica. A filha do intelectual é profissional de jornalismo e comunicação, como resultado da ampliação de sua aptidão muito precária. Embora ambas as profissões tenham o mesmo valor social, a primeira não teve opção, porque a escola não lhe deu sua contribuição.
E manteve-se a escrita. Confirmou-se o “destino”. A maioria é “ruim da cabeça”, mas “muito boa para o trabalho”. Enquanto se esfriam as aspirações da maioria, para serem submissos, dominados e oprimidos, a minoria é apoiada para realizar suas aspirações.
Não dando sua contribuição, a escola impede que a criança desenvolva suas capacidades e, com isso, ela não tem condições de opção como sujeito.



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